A promoção da diversidade racial é uma luta histórica no Brasil que, nas últimas décadas, tem sido impulsionada por conquistas como o uso de cotas raciais no ensino superior brasileiro (STF, 2012), o que também foi estendido, gradualmente, para outros espaços de poder.
A eleição de Donald Trump nos EUA em 2016 e sua retomada em 2024 acirraram o ataque contra programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). Grandes corporações norte-americanas cancelaram iniciativas de diversidade, alegando riscos regulatórios e “marketing político”.
No Brasil, entretanto, a resposta corporativa tem mostrado outro tom: apesar de críticas e ações judiciais, muitas empresas aprofundaram suas políticas de equidade racial.
Políticas de diversidade racial nas empresas
A coalizão MOVER (Movimento pela Equidade Racial) ilustra esse contraste. Em 2024, a iniciativa – formada por empresas como L’Oréal, Diageo e PepsiCo – gerou 2.016 posições de liderança ocupadas por pessoas negras, elevando a participação de negros na liderança para 39 % (cinco pontos acima de 2023).
As organizações da rede criaram 171.604 oportunidades de emprego para pessoas negras e quase multiplicaram por sete o número de participantes nos programas de formação de líderes [4]. Além disso, o MOVER passou de 48 para 56 associadas e continua expandindo programas de estágio exclusivo para negros, grupos de afinidade e letramento racial [4].
Para 2030, a meta da coalizão é formar 10 mil líderes negros; só em 2024 mais de 2 mil profissionais foram promovidos, com 56 empresas criando 170 mil vagas e impactando quase 100 mil pessoas através de programas de capacitação. A diretora-executiva Natália Paiva enfatiza que essas ações precisam de recursos, planejamento e metas, como qualquer área de negócio.
Casos de sucesso: Magalu, Carrefour, Assaí, B3, Grupo Boticário
Carrefour Brasil
Após o assassinato de um cliente negro por um segurança em 2020, o Grupo Carrefour Brasil reformulou suas políticas. A companhia internalizou agentes de prevenção, revisou códigos de ética e implementou due diligence para os 3 mil vigilantes terceirizados, que passaram a utilizar câmeras corporais. Todos os funcionários, inclusive alta liderança, receberam treinamento de letramento racial e o programa #EuPraticoRespeito.
Em 2024, 59,7 % dos colaboradores se autodeclaravam negros e 35,1 % estavam em posições de liderança. A meta é chegar a 50 % de lideranças negras e 50 % femininas até 2030. Programas como P.O.D.E.R. e Mulheridades já beneficiaram 4,5 mil colaboradores, inclusive uma versão específica para mulheres negras.
O Carrefour também instituiu cláusulas antirracistas nos contratos de fornecedores desde 2021 e mantém parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares para treinar agentes de segurança e promover abordagens humanizadas.
Assaí Atacadista
Em 2024, a varejista Assaí registrou 45,8 % de pessoas negras em cargos de alta liderança (gerência e acima), um aumento de 2,3 pontos percentuais em relação ao ano anterior. No quadro geral, 65,5 % dos colaboradores se autodeclaram negros. A empresa também avançou em outras frentes de inclusão (pessoas 50+, pessoas com deficiência), mas sua meta central é consolidar a representatividade racial na liderança dentro da estratégia ESG.
B3 (Bolsa de Valores)
Apesar do recuo em DEI nos EUA, o presidente da B3, Gilson Finkelsztain, declarou que a bolsa brasileira não recuará: “Nosso posicionamento não muda… esse tema veio para ficar, não é moda”. A vice-presidente Ana Buchaim complementa que ambientes inclusivos são mais lucrativos.
A B3 lançou o Anexo ASG, recomendando que empresas listadas tenham ao menos uma mulher e uma pessoa preta, parda, indígena, com deficiência ou LGBTQIA+ nos conselhos de administração. As companhias devem reportar suas ações de inclusão à CVM ou justificar a ausência de diversidade.
Grupo Boticário
O Grupo Boticário divulga metas e resultados em seu Relatório ESG 2024. No quadro geral, 46 % dos colaboradores são negros e 62 % são mulheres. Em posições de liderança, negros representam 26 % e mulheres, 57 %. Para suas campanhas de marketing, a empresa estabeleceu meta de 35 % de pessoas negras no casting em 2024. A companhia também aplica a política de compras afirmativas, dedicando 11 % do gasto com fornecedores a empresas pertencentes a pessoas diversas.
O caso Magazine Luiza e a legitimidade das políticas raciais
O Magazine Luiza (Magalu) tornou-se um marco no debate sobre ações afirmativas. Em setembro de 2020, a empresa anunciou um programa de trainee exclusivo para candidatos negros.
A iniciativa procurava corrigir a disparidade entre o quadro de funcionários, composto majoritariamente por pessoas negras, e a baixa representação nos cargos de liderança.
A repercussão nacional foi intensa, com acusações de “racismo reverso”. Em 2022, o defensor público Jovino Bento Júnior ingressou com ação civil pública, pedindo R$ 10 milhões por danos morais coletivos e alegando que o programa seria “marketing de lacração”.
A 15ª Vara do Trabalho de Brasília rejeitou a ação. A juíza Laura Ramos Morais entendeu que o programa não configura discriminação. Em sua sentença, afirmou que o processo seletivo demonstra “iniciativa de inclusão social e promoção da igualdade de oportunidades decorrentes da responsabilidade social do empregador”.
A magistrada fundamentou-se no Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) e no princípio constitucional da igualdade, ressaltando que ações afirmativas são instrumentos legítimos para reduzir desigualdades. A decisão destacou ainda que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a constitucionalidade de cotas raciais na universidade (2012) e em concursos públicos (2017), reforçando o entendimento de que tais políticas não violam o princípio da igualdade.
O desfecho judicial conferiu segurança jurídica e inspirou outras empresas a lançar programas semelhantes, como Philips, Bank of America, Enel e General Motors. A decisão também evidenciou a necessidade de que o Ministério Público e a Defensoria Pública alinhem-se às pautas de equidade, pois processos infundados podem atrasar avanços estruturais.
O que funciona: metas, letramento, governança e base legal
- Compromisso estratégico e metas claras. As empresas bem-sucedidas integram a diversidade racial à estratégia de negócios, definem metas mensuráveis e monitoram indicadores. MOVER visa 10 mil líderes negros; Carrefour busca 50 % de lideranças negras; Boticário revela percentuais anuais. Metas públicas favorecem accountability e orientam investimentos.
- Treinamento e letramento racial. Programas de formação são cruciais. Carrefour treina todos os colaboradores em letramento racial, enquanto MOVER oferece cursos de liderança, mentoria e bolsas de estudos[4]. O letramento combate vieses inconscientes e prepara equipes para uma cultura antirracista.
- Governança e parcerias. Inclusão precisa de governança. B3 cria o Anexo ASG; Carrefour adota cláusulas antirracistas nos contratos; Boticário estabelece compras afirmativas. Parcerias com universidades (Zumbi dos Palmares) e coalizões (MOVER, IER) oferecem legitimidade e acesso a conhecimentos especializados[4].
- Suporte legal e jurisprudência favorável. O caso Magalu mostra que a Justiça reconhece ações afirmativas como legítimas e necessárias para corrigir desigualdades. Esse precedente reforça a segurança das empresas para adotar programas específicos para pessoas negras.
- Desafios persistentes. Apesar dos avanços, a participação de pessoas negras na liderança ainda é inferior à proporção na população (56 % segundo o IBGE). Empresas precisam ampliar o funil de talentos, garantir retenção e progressão na carreira e fortalecer a inclusão de pessoas negras em conselhos de administração. A resistência social e política (incluindo acusações de racismo reverso) também demanda campanhas de comunicação e sensibilização.
Desafios e próximos passos
A implementação de políticas de diversidade racial nas empresas brasileiras entre 2024 e 2025 demonstra que inclusão e crescimento podem caminhar juntos. Iniciativas como as do MOVER, Carrefour, Assaí, B3 e Grupo Boticário mostram que ações estruturadas – com metas, formação, governança e parceria – geram resultados tangíveis: mais líderes negros, equipes mais diversas e ambientes mais lucrativos.
A decisão judicial favorável ao programa de trainee do Magazine Luiza consolidou a legitimidade das ações afirmativas e serviu de farol para outras organizações.
O desafio agora é expandir essas práticas para todos os setores, garantindo que a equidade racial deixe de ser exceção e se torne regra no mercado brasileiro.