Simone de Beauvoir disse que ninguém nasce mulher, torna-se mulher. Do mesmo modo, entendo que não se nasce uma mulher negra, você torna-se uma. Muitas vezes, mesmo que você não queira, a sociedade vai apontar isso em você.
Meu primeiro artigo para a Mosaice começa por uma questão central para mim: falar de como me “descobri” negra e, mesmo me autodeclarando assim, ainda escuto a frase racista “mas você não é nem negra” como se isso fosse um elogio. Também vamos falar do debate sobre quem é preto, pardo ou negro no Brasil e quais as relações disso com o colorismo.
Nem sempre fui negra, até o dia em que me gritaram assim
Dentre minhas lembranças de criança dos anos 1990, ser apontado como negro me parecia algo distante e não muito bem visto. Lembro que me disseram que minha avó, uma mulher negra retinta (pessoa negra de pele mais escura), lavadeira de roupas, que tinha conseguido comprar seu primeiro pedaço de terra com muito esforço, queria que todos os seis filhos casassem com pessoas brancas pois não gostava de pessoas negras. Cresci, portanto, acreditando que ser negro não era coisa boa.
Os cabelos sempre foram cacheados, a pele negra clara, mas, pra mim, eu não era nem branca nem negra. Eu era “café com leite”, “morena”, “cor de jambo”, até o odioso “mulata”. Alisei os cabelos aos 19 anos e durante quase uma década embranqueci, sem qualquer consciência das violências sutis ou escancaradas que o racismo produz em nós.
Até que um belo dia decidi fazer uma transição capilar, já atuando como advogada e ouvi de uma colega: “- Mas tem certeza? Isso não é cabelo de advogada”. Depois da transição passei a notar vários atos de racismo. Assumir meus cachos evidenciou minha cor.
Aquilo despertou algo em mim. Como diz Victoria Santa Cruz, “me gritaram negra” e eu passei a me perguntar “que coisa é ser negra?”. Foi então que passei a estudar sobre o assunto para descobrir mais sobre o que estavam dizendo de mim.
Quem é negro no Brasil?
Minha jornada começa com as leituras de intelectuais negras como Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, Bárbara Carine, bell hooks, Chimamanda Ngozi Adichie, para citar algumas. Encontrei Silvio Almeida e fiquei impactada ouvindo Sueli Carneiro dialogando com Mano Brown no podcast Mano a Mano.
Tudo me atravessa, várias fichas caem. Primeiro me digo preta, até entender que no Brasil negro é a somatória de pretos e pardos, sendo pretos as pessoas retintas e os pardos os negros de pele mais clara.
Isso inclusive foi falado por Sueli Carneiro, em junho de 2022, ao podcast Mano a Mano, do rapper Mano Brown: “o movimento negro instituiu que negro é igual à somatória de preto mais pardo. A minha geração fez essa engenharia política e nós dissemos: tudo que estiver dito aí que é pardo e preto, para nós é negro”.
É por isso que para o IBGE a pesquisa de cor ou raça da população brasileira se baseia na autodeclaração. Ou seja, quando questionada, a pessoa pode se declarar como preta, parda, branca, amarela ou indígena. Dessas 5 formas de declaração, pretos e pardos compõem o grupo maior de negros.
Nesse ponto, cabe mencionar que falar de raça é compreender que se trata de um conceito essencialmente político, uma vez que conforme leciona Silvio Almeida:
Ainda que hoje seja quase um lugar-comum a afirmação de que a antropologia surgida no início do século XX e a biologia – especialmente a partir do sequenciamento do genoma – tenham há muito demonstrado que não existem diferenças biológicas ou culturais que justifiquem um tratamento discriminatório entre seres humanos, o fato é que a noção de raça ainda é um fator político importante, utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários.
(Racismo estrutural, de Silvio de Almeida, p. 22. Pólen, 2019)
É por isso que o tornar-se negro fala muito mais de um aspecto político do que de uma questão biológica – tanto é verdade que, de acordo com os resultados do Censo 2022, pela primeira vez, 55,5% da população se identifica como preta ou parda. Os pardos, inclusive, são 45,3% da população e superaram a quantidade de brancos pela primeira vez.
Mesmo diante desses avanços das pessoas se reconhecendo como negras e partindo de um olhar positivo sobre a negritude, a questão dos pretos e pardos se depara com o colorismo.
Para muitas pessoas, se posicionar politicamente sobre cor traz a seguinte reflexão: basta apenas eu me autodeclarar ou devo também refletir se a sociedade me vê dessa forma? Eu sou “lido” como uma pessoa branca ou como uma pessoa negra? Por que quando tenho a pele mais clara querem me dizer que eu não sou negra? Ser uma negra de pele clara me permite ter mais acesso?
O que é colorismo?
No contexto dessas reflexões, me vi lidando com outro termo envolvendo questões raciais: o colorismo. O termo surgiu em 1982, logo após a publicação do livro “If the present looks like the past, what does the future looks like?” (em livre tradução, “Se o presente se parece com o passado, como será o futuro?”). Nele, a ativista do feminismo negro, Alice Walker, fala sobre a lógica racista que separa as pessoas pela cor.
No Brasil, o livro Colorismo, de Alessandra Devulsky, aponta o colorismo como prática baseada no processo de colonização.
Significa colocar pessoas racializadas em lugares pré-determinados de subalternidade, num processo de hierarquização racial que é enraizado na ideia de branquitude. As pessoas são então classificadas segundo a quantidade de melanina na pele, segundo seus traços faciais e corporais ligados à africanidade e indigeneidade.
Quanto mais a imagem de uma pessoa se distancia do ideal de branquitude, mais ela será inferiorizada tanto no aspecto estético, como intelectual, sendo relegado a ela o espaço da subalternidade e vulnerabilidade. Isso faz com que as experiências de violência, oriundas do racismo, sejam diferentes para cada pessoa racializada dentre os dois pólos demarcatórios: a superioridade branca e a inferioridade do preto.
(Colorismo, de Alessandra Devulsky, p. 13 e 14. Jandaíra, 2021)
É por isso que quando eu, parda, alisei o cabelo, senti que “embranqueci”. As pessoas não repudiavam de imediato a minha presença, afinal eu estava mais próxima do “padrão branco dominante”.
Tornar-se negro é um ato político
Ocorre que, se por um lado o colorismo cria essa ideia de “passabilidade” para os pardos, por outro impede completamente o acesso de pessoas de pele escura a certos lugares da sociedade e, consequentemente, o acesso delas a serviços que lhes são de direito enquanto cidadãos brasileiros.
É por isso que passar por esse processo de “tornar-se negro”, de se “racializar” como ato político, também passa por estar consciente de todas essas nuances. Não é um processo fácil, o “descobrir-se negro”. Envolve muita dor e sofrimento perceber que ter vindo ao mundo com uma cor pode tornar sua vida mais difícil.
Ao mesmo tempo, ao tomar posse desse lugar, há de se buscar maneiras de viver o lado positivo da negritude: há um senso de comunidade, pertencimento e ancestralidade que te ampara e faz entender porque antes você se achava tão inadequado nesse mundo de brancos.
E é por isso que eu resolvi me apropriar, estudar e falar disso. Eu quero fazer parte dessa descoberta e gerar transformações por onde eu passar.Nesse ponto minha trajetória se encontra com a da Mosaice. Aqui, partimos do compromisso de levar “diversidade que transforma” para dentro das empresas e organizações. Queremos falar desse tema em palestras e rodas de conversas, oferecer diagnósticos e consultorias personalizadas.
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